Conta-se que, numa comunidade de bichos, o coelho se gabava de ser o mais inteligente de todos os animais. Sua vivacidade era o que se poderia chamar de desenvolvimento supremo da natureza. Fazia cálculos complicadíssimos, desvendava intrigantes quebra-cabeças, passava para trás os indivíduos mais espertos que viviam na floresta. Nem mesmo o leão, com toda a sua pose de “rei da selva”, fazia frente àquele coelho levado. E ele se auto-intitulava “Imperador do Mato”.
Certa vez, salvou a avestruz de ser devorada pela onça. A ave idiota, julgando defender-se, enterrou a cabeça na areia, convicta de que se escondia. E o coelho teve bastante trabalho para demovê-la daquela idéia suicida, pois ela teimava que assim tinha sido com os seus antepassados. Em outra oportunidade, praticamente tirou a cobra das garras da águia. Com uma das mágicas monumentais que lhe ensinara o pai, transformou o réptil em um pedaço de taboca (o leitor sabe o que é uma taboca?). Em um sem-número de vezes, evitou a desgraça de pobres animais que seriam devorados cruelmente por seu predador. O coelho vivia assim: defendia o animal com quem simpatizasse, condenava ao castigo aqueles a quem não queria bem.
Mas o herbívoro não era muito de praticar suas artimanhas nas horas vagas. Nunca treinava. Nem criava truques novos. Dizia-se imbatível com o que já sabia. Afirmava de per si que, naquela comunidade de tolos, seria até perda de tempo estudar. Houve um dia em que até fez grande troça com o gambá, porque este se encaminhava para a escola:
— O velho amigo sabe para que se inventou a escola?
— Bem, caro compadre, por certo para dar disciplina aos leigos! — respondeu prontamente o bicho, a render venerações ao superior.
— Não — gritou o coelho —, ela foi criada para enganar os trouxas! Onde já se viu alguém com uma catinga como a sua precisar de escola!?
— Mas, meu compadre — respondeu o gambá, descomposto pela censura —, eu vou lá é praticar. A escola serve também para que não nos esqueçamos daquilo que aprendemos. É nela que evoluímos nosso saber.
— Sabe, compadre, cada idiota com suas manias; eu é que não preciso disso!
Num outro dia, também destratou o rato, por este estar trocando a porta de sua toca por uma outra mais resistente. “Afinal, ô animal bastardo!... Para que se preocupar com portas, se não haveria gato para alcançá-lo nas profundezas de seu buraco?”
E era assim, o coelho se considerava o tal! Criticava muitas atitudes dos outros animais, subestimava-os. Todos ali o respeitavam. Os mais ferozes felinos, os gigantescos elefantes, crocodilos e rinocerontes, todos só viviam a dizer que aquele coelho venceria todos os concursos da floresta, se deles participasse. Mas o danado não arriscava: vivia a comentar que naquilo tudo tinha falcatruas e marmeladas.
Entretanto, não obstante a sua grande inteligência, o todo-poderoso coelho não possuía nenhum título. Vivia de suas antigas glórias. Os outros animais estavam sempre se revezando no poder. Quem diria! O gambá se promovera a Conselheiro da República da Selva. O rato, em seu recém construído palacete, chefiava o Departamento da Defesa. A cobra era uma grande autoridade no Ministério da Saúde. Até a avestruz se tornara docente na arte de botar ovos grandes. Só o coelho continuava o mesmo. Inteligente e sagaz, mas sem nenhum posto no governo.
De vez em quando, tentava mudar. Inscrevia-se para uma batalha, um jogo, um concurso. Mas quando outra vez não era bem classificado, saía comentando que a floresta estava cheia de maracutaias e apadrinhamentos. Julgava que todas as conquistas de seus conterrâneos tinham sido “um jogo de cartas marcadas”, arranjos do nepotismo que grassava a floresta. Logo ele, o mais inteligente dali, era preterido; enquanto os molengas dos outros bichos iam ocupar os mais altos postos do governo!
Um dia, o coelho descia altaneiro o caminho que ia dar no pântano, quando viu um imenso e feio sapo pulando de um lado para o outro. Então o interpelou, indagando-lhe zombeteiro:
— Ô compadre, por que ficar desperdiçando energia?
— Estou praticando, compadre mestre! Vai acontecer um grande concurso por aqui e ganhará aquele que vencer os dez mais ferozes animais do pântano.
— Então perder significa ser devorado por um deles?
— Mas ganhar representa conquistar o direito de viver o resto da vida, comendo do bom e do melhor sem precisar trabalhar!
— Isto é que é um prêmio!... Coelhos podem participar?
— Sim. O concurso é aberto a todo o público. Mas, cuidado, meu compadre, não convém inscrever-se e não estudar. O primeiro componente da banca julgadora é uma tigresa que ficará uma semana enjaulada, sem comer nem beber. Chama-se “Doutora Acomodação”.
— E isso lá é nome que me meta medo, compadre! Quem mais julgará?
— O edital terá a informação completa, não me lembro de cor. Mas há um urso chamado “Senhor Desânimo”, um crocodilo de nome “Exmo. Sr. Convencido” e um rinoceronte que carrega um dístico no uniforme: “Autoconfiança Excessiva”, parece ser o chefe da equipe. Há outros; mas posso garantir-lhe que todos farão de tudo para que nenhum candidato saia vitorioso, meu bom compadre!
— Qual nada, isso é para os bobos! Não há nada que a inteligência não derrote. Vou-me inscrever nessa brincadeira.
Que pena é ter de informar que o coelho não passou da primeira rodada. Conta a história que o nosso bravo candidato, logo de início, recebeu um golpe certeiro. Tentara fazer frente ao inimigo, mas seus truques já haviam se tornado obsoletos, conhecidos de todos. O sapo, por praticar todos os dias, tinha-se inovado. Descobrira seus pontos fracos e, com muito esforço, criou metodologia nova para os invalidar. Recapitulou a jurisprudência do pântano, aperfeiçoou-se com modernas lições. Foi o vencedor do concurso.
MORAL: a inteligência é uma pedra preciosa, mas inócua se em estado bruto. Somente o esforço, a dedicação e o aperfeiçoamento a deixam no ponto de produzir efeitos satisfatórios.
Comments