top of page

A FÁBULA DA INTELIGÊNCIA

Foto do escritor: Salvador AraújoSalvador Araújo

Conta-se que, numa comunidade de bichos, o coelho se gabava de ser o mais inteligente de todos os animais. Sua vivacidade era o que se poderia chamar de desenvolvimento supremo da natureza. Fazia cálculos complicadíssimos, desvendava intrigantes quebra-cabeças, passava para trás os indivíduos mais espertos que viviam na floresta. Nem mesmo o leão, com toda a sua pose de “rei da selva”, fazia frente àquele coelho levado. E ele se auto-intitulava “Imperador do Mato”.


Certa vez, salvou a avestruz de ser devorada pela onça. A ave idiota, julgando defender-se, enterrou a cabeça na areia, convicta de que se escondia. E o coelho teve bastante trabalho para demovê-la daquela idéia suicida, pois ela teimava que assim tinha sido com os seus antepassados. Em outra oportunidade, praticamente tirou a cobra das garras da águia. Com uma das mágicas monumentais que lhe ensinara o pai, transformou o réptil em um pedaço de taboca (o leitor sabe o que é uma taboca?). Em um sem-número de vezes, evitou a desgraça de pobres animais que seriam devorados cruelmente por seu predador. O coelho vivia assim: defendia o animal com quem simpatizasse, condenava ao castigo aqueles a quem não queria bem.


Mas o herbívoro não era muito de praticar suas artimanhas nas horas vagas. Nunca treinava. Nem criava truques novos. Dizia-se imbatível com o que já sabia. Afirmava de per si que, naquela comunidade de tolos, seria até perda de tempo estudar. Houve um dia em que até fez grande troça com o gambá, porque este se encaminhava para a escola:


— O velho amigo sabe para que se inventou a escola?


— Bem, caro compadre, por certo para dar disciplina aos leigos! — respondeu prontamente o bicho, a render venerações ao superior.


— Não — gritou o coelho —, ela foi criada para enganar os trouxas! Onde já se viu alguém com uma catinga como a sua precisar de escola!?


— Mas, meu compadre — respondeu o gambá, descomposto pela censura —, eu vou lá é praticar. A escola serve também para que não nos esqueçamos daquilo que aprendemos. É nela que evoluímos nosso saber.


— Sabe, compadre, cada idiota com suas manias; eu é que não preciso disso!


Num outro dia, também destratou o rato, por este estar trocando a porta de sua toca por uma outra mais resistente. “Afinal, ô animal bastardo!... Para que se preocupar com portas, se não haveria gato para alcançá-lo nas profundezas de seu buraco?”


E era assim, o coelho se considerava o tal! Criticava muitas atitudes dos outros animais, subestimava-os. Todos ali o respeitavam. Os mais ferozes felinos, os gigantescos elefantes, crocodilos e rinocerontes, todos só viviam a dizer que aquele coelho venceria todos os concursos da floresta, se deles participasse. Mas o danado não arriscava: vivia a comentar que naquilo tudo tinha falcatruas e marmeladas.


Entretanto, não obstante a sua grande inteligência, o todo-poderoso coelho não possuía nenhum título. Vivia de suas antigas glórias. Os outros animais estavam sempre se revezando no poder. Quem diria! O gambá se promovera a Conselheiro da República da Selva. O rato, em seu recém construído palacete, chefiava o Departamento da Defesa. A cobra era uma grande autoridade no Ministério da Saúde. Até a avestruz se tornara docente na arte de botar ovos grandes. Só o coelho continuava o mesmo. Inteligente e sagaz, mas sem nenhum posto no governo.


De vez em quando, tentava mudar. Inscrevia-se para uma batalha, um jogo, um concurso. Mas quando outra vez não era bem classificado, saía comentando que a floresta estava cheia de maracutaias e apadrinhamentos. Julgava que todas as conquistas de seus conterrâneos tinham sido “um jogo de cartas marcadas”, arranjos do nepotismo que grassava a floresta. Logo ele, o mais inteligente dali, era preterido; enquanto os molengas dos outros bichos iam ocupar os mais altos postos do governo!


Um dia, o coelho descia altaneiro o caminho que ia dar no pântano, quando viu um imenso e feio sapo pulando de um lado para o outro. Então o interpelou, indagando-lhe zombeteiro:


— Ô compadre, por que ficar desperdiçando energia?


— Estou praticando, compadre mestre! Vai acontecer um grande concurso por aqui e ganhará aquele que vencer os dez mais ferozes animais do pântano.


— Então perder significa ser devorado por um deles?


— Mas ganhar representa conquistar o direito de viver o resto da vida, comendo do bom e do melhor sem precisar trabalhar!


— Isto é que é um prêmio!... Coelhos podem participar?


— Sim. O concurso é aberto a todo o público. Mas, cuidado, meu compadre, não convém inscrever-se e não estudar. O primeiro componente da banca julgadora é uma tigresa que ficará uma semana enjaulada, sem comer nem beber. Chama-se “Doutora Acomodação”.


— E isso lá é nome que me meta medo, compadre! Quem mais julgará?


— O edital terá a informação completa, não me lembro de cor. Mas há um urso chamado “Senhor Desânimo”, um crocodilo de nome “Exmo. Sr. Convencido” e um rinoceronte que carrega um dístico no uniforme: “Autoconfiança Excessiva”, parece ser o chefe da equipe. Há outros; mas posso garantir-lhe que todos farão de tudo para que nenhum candidato saia vitorioso, meu bom compadre!


— Qual nada, isso é para os bobos! Não há nada que a inteligência não derrote. Vou-me inscrever nessa brincadeira.


Que pena é ter de informar que o coelho não passou da primeira rodada. Conta a história que o nosso bravo candidato, logo de início, recebeu um golpe certeiro. Tentara fazer frente ao inimigo, mas seus truques já haviam se tornado obsoletos, conhecidos de todos. O sapo, por praticar todos os dias, tinha-se inovado. Descobrira seus pontos fracos e, com muito esforço, criou metodologia nova para os invalidar. Recapitulou a jurisprudência do pântano, aperfeiçoou-se com modernas lições. Foi o vencedor do concurso.


MORAL: a inteligência é uma pedra preciosa, mas inócua se em estado bruto. Somente o esforço, a dedicação e o aperfeiçoamento a deixam no ponto de produzir efeitos satisfatórios.

1 visualização0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

O ESTÍMULO À VIDA

O homem será extinto da Terra se lhe faltar a poesia! Se uma hecatombe cultural exterminar esse “estímulo à vida”, não mais vingará a...

GÊNESIS DE UM FUSCA E DE UM AMOR

No início, era o vazio; depois, veio a guerra. Da guerra surgiu a necessidade e desta o sonho. Do sonho se fez o Verbo e o Verbo era o...

O REINO DOS SENTIMENTOS

Muito antes do surgimento do homem na Terra, havia um grande reino que era dominado pelos sentimentos. E, como se pode deduzir, ali todos...

Comments


bottom of page