A humanidade não costuma se importar com o que faz o lobo ser lobo e o cordeiro, cordeiro. O que a filosofia universal não desmente é que a figura do lobo está sempre associada ao mal, à ladinice; enquanto que a do cordeiro representa o bem, sugere passividade, doação.
E não será por este texto que deixará de ser assim pelos séculos e séculos afora, porque se tentará, aqui, apenas uma fábula que explore a inocuidade do lobo e do cordeiro, sem as atitudes tendenciosas do homem.
No entanto, mesmo não ambicionando o feito iconoclasta, há de ficar clara a possibilidade de se inverterem os valores entre lobos e cordeiros. Além disso, quer-se um contexto que leve o ser humano a não se perder no engano, na mentira ou na omissão. Porque a verdade não praticada pode trazer sérios dissabores aos que a detêm. Então, que se inicie a fábula.
Um dia, o lobo caiu de cama e não pôde caçar o cordeiro. Havia prendido as patas traseiras numa fenda, de onde só se safou deixando parte de sua tão estimada pele. Estava mal o sujeito: abatido, esfolado. O que não estaria dizendo a selva inteira a respeito de seu terrível acidente?
Quem mais estava satisfeito com o ocorrido era o cordeiro, um dos símbolos mais adequados que a filosofia dos homens criou. E ele estava outro! Animou-se até a ir à forra com seu eterno antagonista. Prometeu a si mesmo que tiraria satisfações com o rival. Saiu de sua casa cheio de si; andou, despreocupado, floresta adentro — porque, para ele, o maior perigo ali era o lobo — e foi ter com o inimigo, agora vencido pela dor e pela impossibilidade de ação.
A poucos passos da casa do enfermo, o cordeiro gritou:
— Lobo cruel, agora que está inválido, serei eu o seu predador! — apontou-lhe uma afiada lança.
— Não — respondeu prontamente o lobo, a contorcer-se de dor —, você não pode!
— Não posso?... E por que não posso?
— A cordeiros só se dá a alternativa de serem cordeiros! E função mais nobre não há.
— Ah, então é assim!? Eu passo a vida inteira fugindo de você; quantos da minha espécie já não foram parar em seu bucho e, agora que você não pode me perseguir, não me é dado o direito de ser seu perseguidor? — o cordeiro estava extremamente inconformado e já brandia a lança.
Mas o lobo nem se moveu — também não poderia, ainda que quisesse — continuou a olhar, ao longe, as montanhas azuis por onde haviam passado todos os seus ancestrais. E, de lá, trouxe a filosofia dos lobos:
— A pior tolice de um indivíduo é querer ocupar o lugar do seu oponente! Isso é o que se poderia chamar de hipervalorização do inimigo.
— O que você está dizendo?... — tergiversou o cordeiro.
— Estou dizendo que cordeiro autêntico defende sempre o seu direito de ser cordeiro! Você já imaginou o que seria do mundo se todos os cordeiros se transformassem em lobos? Nascemos com uma missão: a minha, mesmo impossibilitado de andar, será sempre a de ser lobo; a sua, ainda que aí, todo bonitão e poderoso, não pode ser outra, senão a de ser eternamente um cordeiro.
— Mas isso é permitir que o mal fique com a melhor parte. Por que o mal se harmoniza com prazer e o bem, com sofrimento e aceitação da derrota?
— É a missão, caro amigo! Eu cumprirei o meu dever de ser mau. E você, a seu turno, mesmo nos momentos de superioridade, terá de ser sempre amável, solidário e piedoso. Ou não estará cumprindo a vocação de um cordeiro.
— Então o bem jamais poderá ser mau, nem mesmo com o mal... Ou seja, cordeiros nunca podem aproveitar a vida?... Veja bem! Quem dentre nós é mais importante para poder dizer isso?
— Calma, conterrâneo — o lobo estava admirado da agressividade do cordeiro —, isso é a natureza: um lobo tem de ser sempre um lobo; um cordeiro, sempre um cordeiro. O que seria do bem, se não fosse o mal?
— Grande asneira... O mal nem deveria existir! — gritou o cordeiro com um sorriso de deboche.
— E não existe — retrucou o lobo, já com a persuasão de um pregador fervoroso —, nem o bem nem o mal existem! Os dois são abstratos demais para existir fora de um ser.
— Tudo bem — gritou o outro, levantando novamente a lança —, então, sendo cordeiro, um ser, portanto, posso praticar-lhe o mal!
— Não, não pode! Porque, se o fizer, estará agindo como lobo, não como cordeiro.
— E você também jamais praticará o bem; porque, assim, estaria agindo como cordeiro?
— Isso é relativo. Sendo lobo, eu estarei realizando o bem para o qual fui criado. O que eu não poderia era agir como cordeiro, descumprindo minha missão. Praticar o que você chama de mal sempre foi o meu lema... Você não teria aí alguma perninha de cordeiro para matar minha fome? — o sacana até sorriu por dentro com a gozação.
— Sinta-se satisfeito por eu não matá-lo. Porque meu lema sempre foi praticar o bem.
— Um lema muito bonito, por sinal!
— E qual seria o Lema Universal, o lema de todos os seres? — o cordeiro, àquele momento, já estava sentado, filosofando com o lobo.
— Praticar a Verdade que foi imposta a cada vivente.
— Que verdade é essa?
— Tudo aquilo que se aprende na grande saga da vida! Ai daquele que, conhecendo a sua verdade, não a pratica, somente para satisfazer prazeres momentâneos.
— O que acontecerá comigo, se eu não quiser praticar a verdade dos cordeiros?
Foi o momento de maior tensão. O moribundo, entregue às dores fortíssimas e abafando a custo seus gemidos, percebeu sua impotência diante do cordeiro. Este já se encontrava de pé novamente, a poucos passos dele, com a pontiaguda arma apontada para seus olhos. Era preciso jogar uma última cartada; embora não tivesse muitas alternativas, nem tempo. E o cordeiro sacudia a lança ameaçadoramente.
Mas a artimanha lupina é mesmo admirável. Já abandonado a seu destino, o lobo quis impressionar o cordeiro na resposta a seu questionamento. E, utilizando-se do impacto que a segunda pessoa do singular confere ao discurso, falou ao rival:
— Se te arrependeres dos teus pecados, o Senhor te perdoará, para que confirmes Sua infinita misericórdia! Se retomares humildemente a tua condição de cordeiro, Ele te elevará ao Reino Eterno dos Cordeiros, para que comproves Seu santo senso de justiça. Todavia, se te enveredares por caminhos opostos à tua saga de cordeiro, o Senhor Criador de Todos os Cordeiros te levará ao chão e te destruirá, para que reconheças Nele o poder supremo da onipotência!
Dizem que o cordeiro baixou a arma imediatamente e foi embora cabisbaixo. O que não se sabe, no entanto, é se o lobo continuou lobo ou se transformou em anjo. Mas, a partir dali, espalhou-se esta lição por todos os confins da Terra: “Nem sempre o mal é tão mau, que não se possa extrair dele algum bem; nem o bem é sempre tão bom, a ponto de jamais poder provocar algum mal”
Texto publicado pelo autor, em 2012, no livro “A felicidade se faz de coisas possíveis”, pp. 14-19.
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