No início, era o vazio; depois, veio a guerra. Da guerra surgiu a necessidade e desta o sonho. Do sonho se fez o Verbo e o Verbo era o início e o fim. O Verbo estava no sonho e o sonho, no Verbo. Então o Verbo disse: “Faça-se o fusca!” E o fusca foi feito.
Não contente ainda, o Verbo determinou que ninguém, entre o céu e a terra, ficasse sem andar de fusca. E assim foi; e para sempre será, por todos os séculos, seclorum. Amém! Ainda que o subestimem e parem de fabricá-lo, ele estará presente em outros espécimes modernos; viverá, mesmo que numa célula, numa imaginação, numa saudade. Porque todo e qualquer motorista deste Vale de Lágrimas há de ter guiado um fusca, ou de vir a guiá-lo um dia. Infeliz daquele que vencer seu tempo aqui sem que esta palavra se cumpra nele!
A maior parte dos condutores brasileiros não apenas aprenderam a guiar num fusca, como também foi este seu primeiro carro. O meu veio no final da década de 80: um branco-gelo de quase dez anos de uso. Tinha volante esportivo e rodas de liga leve; sua descarga soltava um ronco que impunha respeito.
Foi um tempo de glória. E não ter habilitação não chegava a ser um grande problema. Que sonho que nada, estava vivendo a realidade, a apoteose de uma conquista. Então veio a primeira namorada, a segunda, a terceira... Perdi a conta, e a vergonha também. Não sei se esta foi mais uma máxima do Verbo: que todo dono de fusca há de ter mais de uma namorada.
A primeira pessoa a quem dei carona foi um vizinho, pai de uma menina matreira. De tão introvertida, aos dezesseis anos, ainda se escondia de visitas; mas era linda como o nascer da lua cheia. O homem estava temeroso, a perguntar pela “carteirinha”. Menti que possuía, ele aceitou sem acreditar. Eu queria aparecer, mostrar meu carro. Mas a menina mesmo não dava a mínima, continuava insensível a mim. Eu chegava a sua casa buscando um jeito de ser útil, almoçava, assistia a TV. Queria me tornar íntimo da família.
Mas era tudo em vão; depois de um certo tempo, ela pareceu até me odiar. Escondia-se de mim, questionava à mãe o que eu tanto fazia lá. Falava da comida que ela me dava, das quitandas que me servia no café. Vestia-se horrorosamente, a aparentar mais velha que seus dezesseis anos. Entretanto, era o que lhe dava naturalidade: uma beleza rústica, um jeito de fera.
Mas quem diria que a saída ia ser o fusca! Um dia a menstruação dela lhe trouxe cólicas terríveis e sua mãe me pediu que a levasse ao hospital. Que sorte! Daí em diante, ficou minha amiga. Depois disso, pareceu até gostar de minha companhia. Na volta da escola, vinha sempre comigo, mesmo sua irmã mais velha rejeitando a carona.
Passou o tempo; tão rapidamente, que eu não vi seus dezesseis anos se transformarem em vinte e sete, nem meus vinte e quatro se tornarem trinta e cinco. Confesso que o processo foi tão alucinante, que nem percebi quando o fusca perdeu o lugar para um corcel e este, para um passat verde-abacate. Então nos casamos. Era 12 de julho de 1997: tempo bom, tarde de sol...
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