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O DIA DO AMOR

Foto do escritor: Salvador AraújoSalvador Araújo

A aula de Filosofia, por certo, ficaria muito interessante com aquele assunto, ia ser o primeiro horário. Mas o professor não costumava permitir intervenções dos alunos. Ademais, a turma não ajudava no quesito disciplina. Rômulo queria discutir o tema. Diego também. Uma questão polêmica! Afinal, o que seria mesmo o amor? Algo como a saudade, a dor, a compaixão? Um sentimento como todos os outros?...


Os dois colegas de turma falavam cheios de interesse. Um aceitava o desafio proposto pelo outro, mas nenhum deles tinha respostas muito concretas. A sirene tocou o segundo sinal, iam começar as aulas.


Poucos minutos depois, entrou na sala um professor sério, de alguns quarenta e poucos anos. Os dois amigos pensaram em arriscar uma pergunta, mas temiam pela decepção. O docente não era de dar muito papo para aluno. Rômulo tinha que aproveitar o momento em que ele ia pegar a ficha com o plano de aula. Que se danasse sua reação!


— Professor, o senhor poderia nos falar um pouco sobre o ato de amar? O que é o amor? Um sentimento comum a todos os homens?...


— O amor?... Hoje não posso. Nossa aula tratará dos vários tipos de raciocínio. Vamos trabalhar com a Lógica. Amor é um sentimento nobre que não se explica, vive-se. Para entender o amor é preciso vivê-lo. O que é muito difícil aqui.


O garoto não se importou muito com a afronta; de fato, a turma nunca contribuía para que as aulas fossem de qualidade. Mas aquele professor também jamais tinha tentado compreender a idade dos alunos. E assim, passado o primeiro momento sem que ele se enfurecesse, o menino animou-se a dizer:


— Na aula passada, o senhor afirmou que “os sentimentos são a parte filosófica de qualquer ser humano normal e que, através deles, todo indivíduo trabalha suas outras partes: aguçando-os ou refletindo sobre eles”. Eu anotei.


— E é verdade. Mas, daí a tornar o amor um sentimento comum a todos os homens, há uma grande distância. E os tantos crimes hediondos? E as guerras? E a miséria que assola determinadas nações?...


— Mas, professor, se os sentimentos são comuns, e o amor é um sentimento, então o amor é comum. Todo o mundo é capaz de senti-lo, de alguma forma, por alguma coisa, mas sente.


O professor levantou o olhar e se deparou com toda a curiosidade de Rômulo. A turma esperou um sermão, como sempre acontecia. Também o aluno curioso já se preparava para ser expulso da sala. Que se danasse! Tinha valido a pena. Mas o mestre guardou a ficha dentro do livro e encarou a classe. Ia esbravejar de novo? Aquelas aulas estavam intragáveis!


— O amor é a união de todos os outros sentimentos!


Todos os alunos acharam brilhante aquela frase, mas não se atreveram a aplaudir o sério senhor. Que frase de efeito! Que sabedoria! O silêncio que se fez, jamais outro ambiente tinha experimentado. A concentração ali animava qualquer bom orador. E, sentindo-se alvo de todos os olhares, o mestre prosseguiu:


— Partindo-se do princípio de que todo homem é capaz de amar algo, ainda que seja amar a própria falta de amor, pode-se dizer que seu raciocínio é lógico. Vamos construir um silogismo...


— Silogismo?... O que é um silogismo?...


Reteve-se espantado, nunca ninguém participava de suas aulas. Ainda mais Humberto, um dos mais extravagantes roqueiros da sala. Arrepiou-se todo com aquele interesse. E, com a segurança dos antigos pensadores, disse:


— O silogismo é uma forma de raciocínio dedutivo, constituído por duas premissas. Por exemplo: Todo ser humano ama; José é um ser humano; então, José ama.


Estava empolgado. Definiu o que era premissa, tanto a maior, quanto a menor; esmiuçou tudo sobre raciocínio dedutivo e indutivo. Falou da intuição. Queria comentar sobre as falsas premissas, que levam a falsos raciocínios. Mas veio o sinal. Não tinha percebido o tempo passar. Na próxima aula retomaria a discussão.


O professor acabara de sair, e a turma já procurava uma explicação plausível para o amor. Que aula! Seria o amor o sentimento das coisas boas? Amar gera paz, justiça, perdão, entendimento... Rômulo estava quase certo que sim. Mas Diego não se dava por convencido daquilo.


— O amor não gera apenas a paz, proporciona também a guerra. Sentimento de justiça? Perdão? Entendimento?... Tantos são os exemplos de acontecimentos em que o amor desconhece tudo isso!


Chegou o professor de Matemática e foi envolvido pelo assunto. Era um estudioso, um exemplo de profissional moderno. Aquela deve ter sido sua melhor aula. Ouviu variados pontos de vista, fez inúmeras abstrações, cogitou sobre muitas coisas. Diego iniciou um debate:


— Professor, a Matemática tem alguma explicação para o amor?


— Sim. Só não é definitiva, nem única. Porque explicar o amor não cabe a uma disciplina em especial. Matematicamente, a idéia de amor é como a idéia de número: imensurável, indescritível. Mas, assim como a idéia de um número é traduzida no algarismo, a idéia de amor se manifesta por meio de ações como o perdão, o querer bem, a possessibilidade...


— Então perdoar não é ainda mais nobre que amar?


— Não. O perdão é uma atitude, um ato proporcionado pelo amor. Assim também, praticamente todos os outros atos.


— Beleza, professor!... Está visto que o senhor não sabe apenas Matemática!...


O professor ficou satisfeito com o elogio e propôs uma equação. Equação?... Que equação?... A equação do amor. É possível se ter uma equação do amor?... Sim. Vamos resolver a equação: a2 = (ax + ate) ÷ mo, sendo a # 0.


Os alunos adoraram aquela aula e nem perceberam o tempo passar. Com a equação, o professor ensinou tudo que havia preparado para a aula daquele dia, e não ficou muito satisfeito com o sinal. Saiu pensando que poderia ter falado ainda sobre isso, sobre aquilo...

Chegou a professora de Geografia, uma pessoa que nenhum aluno jamais tinha entendido. Não seria conveniente tentar com ela uma explicação geográfica para o amor? Não. Certamente ela não teria nada a dizer. Mas alguém, não se sabe de onde, fez-lhe esta pergunta:


— Professora, como explicar o amor, na Geografia?


Ela se assustou. Perguntas?... Naquela sala!?... O que será que eles queriam? Gozar de sua cara? Se soubesse quem era o engraçadinho, ia mandá-lo imediatamente para a diretoria! Mas teve outra idéia:


— O amor é o sentimento entre o criador e a criatura!


— Que beleza!... — resmungou alguém.


— Mas que não se deixa entender — prosseguiu a professora —, foge aos parâmetros dos outros sentimentos: pode estar entre o conquistador e o conquistado, entre o vencedor e o vencido...


Palmas! Houve assobios, interjeições de espanto, frases de admiração. Ela sentiu uma coisa boa por dentro, mas não queria ceder. Devia dar suspensão para toda a turma? No mínimo, tinha que aplicar uma prova difícil. Mas Rômulo interrompeu seus planos:


— E em relação à natureza, professora, o que pode explicar o amor?


— Ela própria já é uma explicação.


— Como assim?...


Até aquela menina: a aluna que parecia a mais desinteressada da turma!? O que tinha dado neles? Seria o efeito de alguma droga? A força da lua?... E, desfiando aqueles pensamentos, respondeu até um pouco entusiasmada:


— Cada região possui um conjunto de espécies vegetais e animais, nascidas e adaptadas para viver ali. Prestam-se a um fim, cumprem uma ordem superior. Vejam ainda os rios, os lagos, os mares... Observem o próprio Universo. Ninguém pode negar que tudo isso tenha sido criado para servir à vida. De um jeito ou de outro: se não é para lhe dar conforto, é para garantir-lhe perpetuação. Pode haver maior prova de amor?


Foi a partir daí, que a professora explicou a formação e a composição das rochas, bem como suas funções no planeta. Falou sobre relevo, situações climáticas e sobre os diversos tipos de florestas. Queria até comentar sobre a importância dos insetos, mas veio o sinal para o recreio. Que coisa!... Não tinha conseguido dar sua aula. Mas... — que coisa!— não foi daquilo mesmo que planejara falar?... E que aula!...


Depois do recreio, aquele assunto foi causador de debates excitantes nas duas outras aulas. Na aula de Química, falou-se até de uma certa “química do amor”. A professora de português entrou no contexto e explicou o amor como uma “língua universal”. Todos, em qualquer parte do mundo, sentiam o amor igualmente. As reações podiam até ser diferentes, mas o sentimento era o mesmo. E, em se tratando do nosso idioma, como não amar aquele homem lá do extremo norte ou do extremo sul? “Eles falam igual a nós, mesmo com os seus sotaques, seus regionalismos. O amor é uma energia comum à vida. Sim, a qualquer tipo de vida! Até os animais ferozes, mesmo os répteis, todos têm demonstrações de amor, ainda que tão-somente pelas suas crias!” E a professora deu show de intertextualidades!


Nas aulas dos outros dias, nenhum professor apresentou resistência ao tema. Todos até procuravam um meio de contextualizar o assunto. Em Biologia, certificou-se de que a vida só existe em função do amor. Estudou-se metabolismo, falou-se de movimentos voluntários e involuntários. O amor estava em tudo. Os jovens perceberam que precisavam amar mais seus corpos, valorizarem-se mais. E por muitas vezes abominaram as drogas.


Em História, contou-se sobre as peripécias do amor ao longo da vida humana na Terra. Citaram-se tragédias, crimes reais e fictícios, guerras e revoluções famosas. Tudo por causa do amor. Em literatura, falou-se dos enredos heroicos e das epopeias famosas. Todos os temas se intertextualizaram com o amor.


E as aulas iam ficando cada vez mais interessantes. Nos recreios, os professores comentavam o tema entre si, combinavam interdisciplinaridades, discutiam temas transversais. Sorriam felizes com suas aulas, a trocar experiências. Davam-se as mãos. Amavam-se. Ao mesmo tempo, no pátio, o assunto ia-se alastrando de aluno para aluno, modificando suas atitudes em relação ao meio. Pois “preservar era também um ato que nascia do amor”! A direção da escola ficou muito mais receptiva às reivindicações. Até a merenda melhorou o gosto.


Só depois de muitos debates envolventes, o assunto saiu de cena; porque, alguns dias depois, havia dado origem a outros temas. O desfecho se deu com uma brilhante exibição do professor de Física, que discursou entre palmas e elogios: “O amor não é uma fórmula pronta, nem única, cada indivíduo vai, pela vida, descobrindo e montando a sua. E, por se manifestar de formas variadas, nunca se deixa explicar completamente; daí, sua superioridade sobre os outros sentimentos. Pois tudo que é explicável torna-se produto de conveniência, fácil de corromper e de ser corrompido!”


E eles nunca mais foram os mesmos.

Texto publicado pelo autor, em 2012, no livro “A felicidade se faz de coisas possíveis”, pp. 83-90.

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