O legislador deve ser como o santeiro devoto, que se benze diante da imagem que esculpiu. É que lei e santo não são produtos de um cinzel, mas entidades imateriais de hierarquia superior. Nem Montesquieu, com sua obra quase sacrossanta, conseguiu dar à lei um espírito; porque este vem do povo. Não existe lei sem povo, como não existe santo sem fiéis. Do contrário, a lei será um texto inerte; o santo, uma estátua qualquer. Então, o legislador deve ser o primeiro a jurar obediência à lei; porquanto, a norma, assim como o santo, está acima das vontades daquele que lhe deu forma.
Todavia, não basta tal respeito. Assim como o santeiro não deveria erigir a imagem de um santo em quem não tenha fé, também o legislador não deveria criar uma lei em que ele mesmo não confia; porque uma norma inexequível é mais perniciosa que uma lacuna. O texto jurídico precisa não apenas atender a uma necessidade; mas, acima de tudo, deve ser útil. É por isso que o processo legislativo propõe uma série de exercícios de concatenação antes de a norma ser positivada. Se aquele que detém o poder de legislar edita leis desnecessárias, estará blasfemando; conforme o santeiro ultrajante, que inventa santos de que não se podem esperar milagres.
Mas ainda não é tudo: por ser a lei uma criação humana vinculada a uma causa, é imperioso que o legislador não deixe fatos do presente ludibriarem sua razão. Pois, se a regra é a norma jurídica regular uma situação futura ao início de sua vigência, criá-la ou enrijecê-la para atender a clamores sociais ou a paixões egocêntricas pode torná-la inaplicável, quando não a infecta com o ranço da inconstitucionalidade. É o caso do artesão que fabrica imagens por encomenda. Santeiro que esculpe o santo de acordo com o pedido não o faz por devoção, quer apenas agradar ao cliente ou fazer comércio. É lamentável saber que existem, em nosso mundo jurídico, alguns São Beneditos loiros e Nossas Senhoras com ares de filhas brutalmente assassinadas. Que nos perdoem os santos!
Resta, no entanto, discutir a importância da teleologia. Lei é um mecanismo que se presta a um fim, mesmo que nem sempre específico ou especificado. Adotando-se tal asserção, torna-se factível que a análise teleológica feita na gênese do texto legal, pode até não ser a mesma adotada em sua interpretação. O certo é que toda lei tem um objetivo; nasce para cumprir um propósito. O legislador que cria uma lei para regular coisa alguma é tão-somente um inventor de leis. Seria igual ao santeiro profano, que inventa um santo sem passado, uma estátua de ninguém. Das duas atitudes, a pior ainda é a do legislador; porque uma lei supérflua pode não ser apenas inócua; é possível que, ao viger, provoque sérios danos antes de ser anulada ou sofrer revogação. Enquanto um santo de mentira nem chega a ser uma fraude, uma vez que não conseguirá o aval eclesiástico. Como se pode ver, a lei desnecessária é bem mais perigosa que um santo que não realiza milagres.
Mas que não se iludam legislador e santeiro, o espírito que habita seus feitos não tem dono: tanto a lei quanto o santo, de tão ser de todos, são, ao mesmo tempo, tão de ninguém. O legislador pode até vibrar com a lei, apaixonar-se por ela, orgulhar-se de ter sido ele seu criador; porém, jamais poderá tê-la como sua. Amando-a racionalmente, não terá a coragem de conspurcá-la; mas também não sofrerá, se lhe for alterado o fim precípuo. Porque a ela deu corpo sua palavra, mas a aplicação é que lhe dará vida.
Então será o legislador como o santeiro autêntico; porque este, mesmo nutrindo a paixão infrene do beato, nunca faz imagens só para si. Ao terminar a escultura, fica a adorá-la, a conversar com ela, invocando-lhe sacralidade; mas o que ele quer mesmo é atrair fluidos celestiais para os que nela acreditarem. Também assim tem de agir o legislador: deve conversar com a lei, pedir-lhe que fale; como fazia Leonardo da Vinci diante de suas obras. É o momento de exorcizar o texto jurídico das sombras da injustiça, tornando-o imune à insaciável ganância dos homens.
ARAÚJO, José Salvador Pereira. O legislador e o Santeiro. Jornal Estado de Minas, Belo Horizonte, 10 dez. 2012.
Kommentarer