top of page

O REINO DOS SENTIMENTOS

Foto do escritor: Salvador AraújoSalvador Araújo

Muito antes do surgimento do homem na Terra, havia um grande reino que era dominado pelos sentimentos. E, como se pode deduzir, ali todos viviam ociosos, uma vez que ainda ninguém os sentia. Talvez, por isso, começaram a surgir desentendimentos entre eles. Disputavam seus domínios, queriam definir limites.


Paciência havia estendido seu território até os confins do reino. Tolerância já nem sabia mais onde ficavam suas divisas. Amor e Ódio é que estavam num espaço indefinido, causa de muitos distúrbios e indecisões. Onde começavam os direitos territoriais do Amor? Onde terminavam os do Ódio? Divisavam-se no sopé de uma escarpa, mas nenhum dos proprietários sabia onde passava a extrema. Contudo, quem conseguisse subir a forte elevação atingiria as maravilhosas paisagens dominadas pelo Amor. Ódio, por sua vez, governava a região mais plana, lugar de acesso mais fácil.


Também lá em cima, divisando com o Amor, existia uma gleba que ainda mais fazia aumentar as desavenças: era a propriedade da Razão. Os dois sentimentos tinham a mesma incerteza em relação às suas divisas e grande era a confusão quando um tentava dominar o território do outro. Mas, muitas vezes, parecia até ser por conveniência a dúvida que criavam, como se quisessem mesmo confundir o ponto exato de suas delimitações.


Também eram diversos os conflitos envolvendo os três vizinhos. E Razão, por mais que tentasse com suas ponderações e cálculos, não conseguia dirimir suas próprias dúvidas, nem solucionar os desentendimentos entre Amor e Ódio. Muitas vezes, sua intervenção até piorava o resultado entre os contendores. Entretanto, não se podia dizer que os três eram inimigos constantes. Em diversas ocasiões, os dois vizinhos do alto até se davam muito bem; e um passeava livremente pelos domínios do outro. Geralmente, nessas ocasiões, o sentimento da base da cordilheira não intervinha. Mas em outros momentos, discutiam por coisas banais. Chegavam a convocar o terceiro vizinho quando viam ameaçados os limites de seus tão reduzidos minifúndios. E o sistema arbitral nunca surtia o efeito desejado.


Dos três, o mais egoísta era o Amor; porém este era cheio de boas intenções. Ódio, a seu turno, era bastante leviano, agia muito sem pensar. Finalmente, Razão: uma índole perfeccionista que cultivava o isolamento. Para se chegar à sua sede, era preciso vencer o grande abismo da propriedade extremante e galgar uma íngreme elevação que ficava mais ao Norte.


Mas aquele reino era imenso. Comportava ainda muitas outras propriedades. Havia as terras da Compaixão, do Medo, da Solidariedade, da Solidão, da Ignorância, da Ambição, da Bondade e de muitos outros sentimentos. Até a Saudade possuía, ali, seu quinhão: lugar de muitas paisagens, de muitos campos floridos, rios de águas cristalinas e uma imensa floresta virgem chamada “Mata das Recordações”.


Pela constância dos litígios, convocou-se, certa vez, um encontro. Na reunião que definiu a data do concílio, elegeu-se também a Amizade como presidente. Mas poucos dias depois do estabelecido, correram boatos de que estavam acontecendo combinações entre alguns dos sentimentos e a futura chefia. Então se determinou nova presidência, que foi entregue à Razão. O acordo só foi possível, no entanto, com o atendimento a uma exigência da nova comandante: o evento deveria acontecer em sua propriedade.


Porém o acerto não se deu pacificamente. Usura e Ganância muito questionaram por qual motivo o encontro não poderia se realizar em suas terras. E, quando os outros sentimentos conseguiram convencer as duas irmãs, surgiram novos impasses: Medo e Ignorância não conseguiam expressar suas vontades, Competência entrou em atrito com sua rival porque esta culpava Ódio por todos os desentendimentos ocorridos ali. Timidez, sempre a entrecruzar os dedos, é que mais perdia naquele embate, porque aceitava tudo sem nada dizer. Foi preciso que Razão fizesse valer sua autoridade e, assim, tudo se ajeitou da melhor maneira possível.


No dia marcado, todos os signatários do acordo subiram às terras da Razão. Foi extremamente difícil atingir o cume daquela enorme cadeia de montanhas. Mas compensou: era um deslumbre de vista! Dali podia-se dominar todo o resto do mundo. E, como alguns se atrasaram, Tolerância sugeriu que esperassem a chegada de todos para que as discussões começassem. Só depois de duas horas de espera, chegaram os últimos participantes: Arrependimento e Irresponsabilidade.


Foram três dias de discussões. No fim desse tempo, ficou decidido que Amor e Ódio continuariam sendo extremantes; mas, em suas contendas, seriam obrigados a consultar a Razão. Também ficava terminantemente proibido que Amor usasse os pseudônimos de “Fanatismo” e “Paixão” em suas disputas, o que vinha acontecendo com bastante freqüência nos últimos tempos. Decidiu-se, ainda, que a Perseverança e a Ambição teriam propriedades conjuntas; que a Solidariedade ocuparia as terras mais férteis do reino, divisando essas com a Bondade e o Perdão. Todos os outros casos foram definidos. Dali em diante, reinaria a Paz.


Entretanto, já no final da grande partilha, descobriu-se que, segundo o que ficara definido, duas propriedades ali dominariam praticamente todo o reino. Não se cogitou nem mesmo sobre suas delimitações. Então todos voltaram ao debate. Alguns sentimentos até se excediam. E gritavam:


— Por que é que as propriedades da Paciência e da Tolerância nem foram demarcadas?


Em uníssono, responderam as atingidas:


— Porque não sabemos até onde devem ir os nossos domínios.


Os revoltosos apelaram a Razão. Exaltados, esbravejavam que nenhum proprietário ali poderia ter um domínio ilimitado. Onde já se tinha visto um absurdo daqueles!? Será que tudo tinha de ser dominado pela Paciência e pela Tolerância!?...


Os recursos foram a julgamento e, pouco depois, saiu o veredicto. Estabeleceu-se no Regulamento que, naquele reino, nenhum proprietário seria absoluto. Muitos ali precisariam combinar-se, até mesmo permutando seus domínios, de acordo com a necessidade. Outros teriam de se conservar eternamente separados; evitando, assim, qualquer tipo de distúrbio.

Porém o que mais causou entusiasmo, provocando um longo tempo de aplausos, foi o pronunciamento feito pela Razão. A nobre excelência discursou por mais de uma hora seguida, terminando com as seguintes palavras:


— De hoje em diante, quem extrapolar seus domínios, ressalvado o permitido em lei, incorrerá em crime! Todos os proprietários terão suas terras demarcadas e definidas! E, onde reina Justiça e Respeito, até Paciência tem limite!


Texto publicado pelo autor, em 2012, no livro “A felicidade se faz de coisas possíveis”, pp. 104-108.

2 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

O ESTÍMULO À VIDA

O homem será extinto da Terra se lhe faltar a poesia! Se uma hecatombe cultural exterminar esse “estímulo à vida”, não mais vingará a...

GÊNESIS DE UM FUSCA E DE UM AMOR

No início, era o vazio; depois, veio a guerra. Da guerra surgiu a necessidade e desta o sonho. Do sonho se fez o Verbo e o Verbo era o...

CIDADE IRREAL

Formei-me! Ufa! Já estava cansado de estudar. E — o que é ainda pior — meus pais estavam também cansados de financiar meus estudos....

Comments


bottom of page