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PROBLEMAS DA ESCRITA!?

Foto do escritor: Salvador AraújoSalvador Araújo

— Pfessor?...


— Oi!


— O que é mesmo “concerto”?


— Depende.


— Depende de quê?


— Da grafia.


— Grafia!?


— É. Grafia: a escrita da palavra.


— Pfessor... Por favor, não complique mais minha cabeça!


— Eu não estou complicando. Só quero ajudar. Juro!


— Então me explique o que é “concerto”.


— Vai depender da semântica em que a palavra está empregada no texto.


— Mais outra!... S-e... o quê?


— Semântica!


— Isso eu também não sei. Mas, e “concerto”, o que é?


— Já disse que é relativo. Tem “concerto” com “c” e conserto com “s”.


— Ah, então essa é uma palavra que pode ser escrita de duas formas?


— É... Não... São duas palavras de sentidos diferentes, apenas pronunciadas da mesma forma. As duas são homófonas.


— Homo... homo... O quê!?... Cruz-credo!... Então o problema é muito pior. Fiquei com isso na cabeça a noite toda.


— Fez muito bem em me perguntar! Vou-lhe atribuir uma boa nota de participação!


— Então “concerto” é coisa de homossexual?


— Eu não disse isso!... Expliquei que as palavras “concerto” e “conserto” têm a mesma pronúncia.


— Acabou de dizer que são homo... homo não sei o quê.


— Disse que são homófonas; isto é, têm o mesmo som.


— Mas uma coisa não é igual à outra?


— Não. A palavra “concerto” quer dizer...


— Não!... Não é isso. Digo esse tal de homo... Ah, deixa pra lá!... Explica o que significa “concerto”.


— Depende do contexto.


— Com texto ou sem texto: para mim tanto faz.


— Não!... Você entendeu mal. É contexto: uma palavra só.


— O senhor quer dizer que vai me ensinar “concerto” com uma palavra só, fora de um texto.


— Valha-me, meu Deus!... Eu disse contexto: sentido. Todo texto tem um contexto, trata de algum tema em especial.


— Mas as duas coisas não são iguais?


— Não, “conserto” com “s” é uma coisa, “concerto” com “c” é outra. São palavras diferentes.


— Não!... Agora eu não estou falando de “concerto”, mas de “com texto” e “contexto”.


— Eu já lhe disse que é contexto, uma palavra só.


— Sozinha, desacompanhada; sem ser dentro do texto!


— Não, “apenas”. Ou seja: não são duas.


— Duas em ponto!... Seu relógio está atrasado... Olha aí mais uma dúvida: atrasado é com “s” ou com “z”?


— É só você verificar “atrás”.


— Não tem nada, estou na última carteira da fila. Aqui atrás só tem a parede. Ah, o senhor fala que alguém pichou a parede com a palavra “concerto”?... Cadê?...


— Ninguém pichou nada aí. E essa nossa conversa está ficando cansativa. Vamos à aula!...


— Mais uma dúvida: “pichar” é com “x” ou com “ch”?


— Manda esse traste pra p... — interveio alguém já entediado, a colocar a cabeça entre as mãos.


— Mas eu não sei mesmo o que significa “concerto”.


— Qual é o contexto?


— O texto?


— Não... É... Pode ser. O que mais havia escrito perto da palavra “concerto”?...


— Veja.


— Você leu na revista Veja.


— Não. No papel colado em uma garrafa de Veja.


— Como estava grafado?


— Engarrafado?... O detergente?... O que isso tem a ver?...


— Grafado!... Ou seja, como estava escrito?...


— Assim mesmo: v-e-j-a.


— Não!... Não é isso!...


— Ah, desculpe, pfessor! O senhor quer saber com que tipo de letra? Se de fôrma ou cursiva? Mas isso tem importância?...


— Claro que não!... Eu só preciso saber o que é que havia mais nessa maldita garrafa!... Desculpe-me!... Eu não estou nervoso.


— Ah, pfessor, o senhor me assustou!... Dentro tinha um líquido incolor!... O senhor não conhece?... Limpa que é uma beleza!


— Não, gente!... No rótulo!... O que é que estava escrito do lado de fora da garrafa?... O que estava dentro não interessa.


— Já disse: Veja!


— Mas!... E a palavra que lhe deixou em dúvida?...


— Ah, sim!... Estava num papel branco, colado na garrafa. Meu chefe deixou uma ordem escrita para que eu “limpasse o teatro com Veja para o concerto”. Isso é que eu não entendi.


— Até que enfim! — houve um suspiro comunitário.


— Obá!... Entenderam?...


— Claro, desde o início! — foi uma resposta em coro.


— E o que significa?


— Significa que seu chefe queria que você preparasse o teatro para um concerto!...


— Então?... Isso foi o que eu entendi também. Mas o esquisito é que o teatro está novinho. Será, inclusive, inaugurado por uma orquestra, é a mais esperada apresentação musical do ano. O senhor não ouviu falar?


— Então!?... Isso é “concerto”. Você trabalha no Phoenix?


— O quê?...


— Deixa!... Deixa!... Vai acontecer um concerto lá.


— Mas só se conserta algo que está velho ou quebrado.


— Escuta aqui: há “concerto” e “conserto” — o professor escreveu as duas palavras no quadro —, os dois não se equivalem. Na aula passada não estudamos ortografia?...


— Ah, sim; o senhor até explicou “pajem” e “lambujem”, ambos com “j”, de “jiló” e “jeito”.


— Expliquei também “pastagem”.


— É, com “g”, de “girafa”.


— Isto!... Parabéns pela lembrança!...


— Mas eu continuo achando que “pastagem” devia ser com “j”, de “pajem” e “lambujem”. O som não é o mesmo?


— São as imposições da regra.


— Mas uma regra já não é uma imposição? Deixa a gente não acertar não pra ver: o senhor dá zero!


— Não é disso que eu estou falando. Refiro-me às exceções, alguns problemas que todo mundo tem.


— Eu só tenho dois: “concerto ou conserto” e “pastagem”.


— Você não tem mais “conserto”.


— Tenho. Não entendi nada: com “s”, significa consertar algo; com “c”, apresentação musical. Por que um tem de ser diferente do outro, se ambos são ditos da mesma forma?


— Olha aí, eu não disse? Seu problema não está no “conserto” com “s”!... Nem no “concerto” com “c”.


— Não?... Então eu não tenho problema de “concerto” ou de “conserto”?...


Não!... Seu problema é de pastagem!...


Texto publicado pelo autor, em 2012, no livro “A felicidade se faz de coisas possíveis”, pp. 124-129.

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