Esta história parece até uma sugestão de texto, pois só se completa na imaginação do leitor. Aconteceu no início dos anos 90, numa das tantas viagens que fiz com um jornalista meu amigo. Seu carro já era aquela Brasília branca, um automóvel que nos conduziu por tantas estradas. Nesse tempo, eu nem imaginava ter de contar o fato com as atuais intenções.
Manhã de setembro. Que descontração! Brasília possante, de fácil dirigibilidade. Melhor ainda era a alegre companhia do seu dono, um dos mais completos jornalistas que já conheci, e com quem tive o prazer de viajar muitas vezes. Era um verdadeiro irmão.
Mas, tão perto do destino, aconteceu uma pane e o carrinho empacou! Empurramos, e nada! Carburador, platinado, rotor e velas, tudo estava em ordem, porém não funcionava. O problema era que meu companheiro de viagem tinha pressa: viera cobrir um evento político na cidadezinha à frente, estávamos no Vale do Jequitinhonha. E, como sabíamos que o nosso destino ficava a pouco mais de um quilômetro, resolvemos chegar a pé. Na cidade, enquanto ele fazia seu trabalho, eu procurava uma solução para o nosso caso.
Àquela hora, seria mesmo mais fácil encontrar uma namorada do que um eletricista: ali era quase uma vila. Resolvi dormir no carro, tinha certeza que era seguro. Mas meu objetivo não era proteger o automóvel, visava a algo mais interessante, coisas que não se contam em crônicas deste tipo. E, na literatura, não é costume o leitor perguntar nada ao autor do texto que está lendo. Quem lê precisa é estar atento, entender o que dizem as entrelinhas. Você já foi dormir preocupado com uma coisa que não conseguiu fazer durante o dia, leitor? Veja o que me aconteceu:
Entrei numa loja de peças, sem saber o que comprar. Então dois funcionários vieram atender-me. Para minha estranheza, puseram-se a disputar quem encontraria o problema mais susceptível de uma Brasília. O primeiro falou-me:
— Seu carro não deve estar resetando. Vou resolver o caso, mas quero sua namorada em troca!
— Troca-troca! — gritou o outro — é problema de Brasília sim, mas tenho algo melhor.
— O que seria? — interessei-me. Não queria perder aquela beldade que estava do meu lado.
— Me dê oitocentos dólares e eu libero seu carro. Ele foi preso pelo diabozetran.
— Suborno! — gritou o primeiro jovem — Isso é um dos piores problemas de Brasília mesmo... Mas o carro dele está precisando é de uma boa aposentaria.
— O quê!?... O carro do meu amigo é tão novinho!... Esse não é o problema! — agora eu é que sorria deles.
— É isso mesmo!... Acha que aposentadoria precoce não é problema de Brasília!? — de forma sarcástica, retrucou o outro balconista, com ênfase.
Mas o segundo vendedor não se deu por vencido pelo novo argumento. Foi ao caixa e, de lá, veio abraçado a um montão de notas novinhas. Eu cheguei a sentir aquele cheiro esquisito — mas sempre atraente — do dinheiro que nunca foi usado. E quase fui vencido por um estranho desejo quando ele jogou aquela fortuna sobre a mesa, em minha frente, e me disse:
— Tudo isso será seu se me deixar consertar seu carro!
— Enriquecimento ilícito é crime! Jamais aceitaria uma coisa dessas! — levantei-me.
— O quê!?... Esse é um dos problemas mais comuns de Brasília! — o rapaz respondeu triunfante, já dando o colega por vencido.
Mas o adversário, naquele momento, avançou sobre o dinheiro; e, escandalizado, gritou:
— Peteefielemedebista infame!... Esse dinheiro não é seu. Veja quantas crianças estão morrendo de fome! Quantos são os analfabetos deste país! Quantos pais estão desempregados e outros tantos, impotentes, diante da marginalidade dos próprios filhos! Todo dia um velhinho morre na fila de um hospital! Constantemente mães morrem de parto, por falta de atendimento médico ou por estarem desnutridas! Você não pensa nas pessoas?... Você é a própria insensibilidade!...
— Muito bem, parceiro! — falou o outro, a interromper aquele discurso inflamado — Esse aí é o pior problema de Brasília! Agora, se quiser levar sua parte, terá de fazer uma coligação comigo.
— Que vergonha! — balbuciou o que foi derrotado.
— Isso não ocorre em Brasília! — retrucou o vencedor.
— Mas você me pegou a traição! — reclamou o outro.
— Claro!... Traição é o que mais dá em Brasília! Venha comigo, meu chapa — puxou-o pelo ombro, a falar-lhe ao ouvido —, vamos resolver o problema no carro do moço sem deixá-lo entender o que é.
— Por que esse segredo?
— Não devemos deixá-lo conhecer os problemas do carro.
Assombrado, eu os vi correndo para cima de mim, a gritar que iam arrancar o que eu tinha de maior valor para eles. O pior era que, numa imensa aflição, eu tentava afastar-me dali, mas não saía do lugar.
Já estavam bem perto, quando um deles caiu morto. O outro, que vinha logo atrás, arrancou um fio da rede elétrica e introduziu no ouvido do companheiro. Este se levantou furioso e voltou a se investir contra mim. Sua frase escabrosa era esta:
— Vou arrancar-lhe a consciência, porque é com ela que se faz um cidadão! — e repetia sem cessar.
Saí em disparada, mas não fui muito longe. Tropecei em algo e caí. Meu coração batia forte. Eu estava apavorado com a chegada dos dois e nada mais podia fazer, sentia-me completamente dominado. E, quando um deles já se preparava para introduzir o mesmo fio de alta tensão em meu ouvido, eu acordei.
Difícil foi descobrir onde eu estava naquele momento. Encontrava-me trêmulo, desnorteado; suava frio. Só depois de algum tempo, recuperei os sentidos. E, com o autocontrole, veio-me também a solução para o problema do carro. Saltei para fora, com tamanha expectativa, que acordei até a madrugada. Saí defendido pela curiosidade daqueles olhos de lua minguante e, com muito cuidado, introduzi o cabo na bobina. Voltei e rodei a chave: o motor funcionou como novo.
Que magia têm os sonhos!
Texto publicado pelo autor, em 2012, no livro “A felicidade se faz de coisas possíveis”, pp. 114-118.
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