— ...e, por isso, podemos dizer que tangente é igual a seno sobre cos...
“Toc, toc, toc...”
— Senhor professor, com licença!
— Pois não!
— Eu poderia dar um aviso para a turma?
— Sim, fique à vontade.
— Gente, bom dia! Como orientadora, gostaria de me colocar à disposição de vocês para qualquer necessidade. O serviço de orientação funciona na sala 666, no térreo.
Aplausos para ela. Ia saindo, já estava agradecendo ao professor, quando uma aluna perguntou:
— Senhora...
— Mathilde!... Meu nome é Mathilde, com “th”.
— Para que serve a orientação?
— Orientação?... Para orientar o aluno.
— E orienta?
— É... é...
Houve interferência. Alguém questionou, não muito positivamente, a forma de orientação que se dava nas escolas. Muitos quiseram saber a formação escolar de dona Mathilde. De repente, a turma era um tumulto só. Então ela prometeu voltar numa outra oportunidade. “Não queria atrapalhar uma aula tão importante como a de Matemática!”
— Que nada, pfessora, a gente nunca vai usar isso mesmo!
Ela saiu e o professor voltou à aula. Faltavam só cinco minutos para o sinal. Será que daria tempo de explicar tudo? A prova seria na próxima semana.
— Então, como íamos dizendo, a tangente...
— Pfessor!... Quem é o aluno...
— ?!?... Que aluno?...
— Ihhh!... Perdi a folha. Eu sou da secretaria e preciso da nota dele. É o aluno, o aluno...
— Você quer entrar?
— Oi, gente!...
Mais aplausos.
— Brigado!... Eu preciso falar com...
— É comigo, pfessora, eu já trouxe meu histórico, entreguei no mês passado.
O sinal. A aula de Matemática tinha de ficar só naquilo mesmo. Que o professor se virasse para reduzir a prova. Veio Biologia.
— ... é o que chamamos heredograma, ou pedigree. Toda a história genética de um indivíduo está...
— Professora, a direção mandou avisar que amanhã haverá reunião.
— Obá — confusão geral —, então não teremos aula!
— Teremos sim! Os professores deixarão atividades.
Mais tumulto e imprecações. Se alguém pudesse ser ouvido, daria para perceber os mais variados comentários sobre o que seria da aula de “amanhã”. Poder-se-iam entender as gozações, os beliscões e afrontas que mais de um aluno trocavam. Caíam objetos no chão. Jogavam-se bolinhas de papel. Soltavam-se palavrões. Meninos e meninas beijavam-se demoradamente, escandalosamente; porque ninguém via. Um deles acendeu um cigarro. E ninguém ouviu o professor dizer à secretária:
— Ok!... Obrigado.
Fechou-se a porta e o assunto voltou a ser a árvore genealógica de cada ser. Evoluiu-se até os transgênicos. Deslizou–se à evolução das espécies. Desviou-se um pouco para explicar os conflitos da seleção natural. Num instante, já se falava de grupos sangüíneos. Foi nesse ponto que alguém empurrou a porta da sala, a procurar pelo representante da turma. Era um membro do colegiado. A professora não sabia quem era o chefe de turma ali. E a pessoa, que não se identificou, havia metido a cabeça pela abertura da porta e soltado apenas esta frase:
— A direção está chamando o representante!
O aluno saiu da sala, sem nem mesmo pedir licença à professora, que também a nada se opôs. “Representante?... Líder!... Era aquele!?” Com a saída do aluno, a turma começou uma reflexão em conjunto e em alta voz:
— Dessa vez ele vai!
— Vai nada!
— Você não se lembra da bomba que ele explodiu no banheiro?
— Gente!... Silêncio!... Vamos comentar um pouco sobre as doenças hereditárias.
— Professora!... E isso tem cura?
— Não.
— Então, para que estudar?
— Veja bem...
O sinal de novo. “Não tinha dado tempo de falar em tudo.” Como fazer agora, se a prova já estava elaborada?”A esse tempo, a turma estava pior. Havia caído um estojo de lata no piso, produzindo o mais nojento barulho que se pode ter numa sala de aula. Alguém jogou outro, de propósito. Meu Deus, para que fabricar tal objeto com aquele material! Algo desnecessário, desprezível. Uma carteira tombou. Mais beijos e abraços, amassos e carícias libidinosos. Suspiros frenéticos. Taquicardias seguidas de languidez. Um turbilhão de alunos se formou na porta, sem dar atenção aos pedidos de “licença” da professora. Muitos queriam sair ao mesmo tempo. Outros ficavam na porta, a perscrutar em outros grupos que se formavam no corredor, vestígios do bem-amado. A porta estava intrafegável. Foi difícil para o professor de Literatura vencer os pedidos renitentes para que não houvesse aula. Quase que não o deixavam entrar. Enfim...
— Oswald de Andrade era o pregador do antropofagismo. Mário foi quem recebeu o título de “O Papa do Mm...”
— Arrumem as fileiras!... É prova.
— Quem é você?...
Mais barulho. Uma confusão dos diabos! E o professor quase não pôde ouvir a explicação daquela senhora, talvez até muito bem-intencionada:
— Eu sou do SIMAVE, vou aplicar uma prova aqui.
— E minha aula?
— Depois você dá isso!
Texto publicado pelo autor, em 2012, no livro “A felicidade se faz de coisas possíveis”, pp. 119-123.
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