Seu nome de registro era Genebaldo Lopes; mas, por culpa de suas estripulias, atendia, desde criança, pela alcunha de Geninho. Nascera em Roubópolis mesmo e sempre viveu ali. Nunca precisou de nenhuma formação universitária, pois a vida de pobre lhe rendera muita malícia.
Mas não adianta tanta apresentação; Geninho era capaz de tudo e, por isso, tornara-se uma incógnita: ninguém jamais o conheceu completamente. No entanto, para o nosso caso, é bom saber que fora braçal, engraxate e biscateiro, além de vendedor de jia frita, no pátio da pequena rodoviária da cidade. Nessa última profissão — ele mesmo confessou mais tarde —, vendera muito sapo em lugar de rã, quando a caça nos esgotos da cidade ficava escassa. Sabia-se que em tudo dele havia desonestidade. Mas era alegre, tinha algo que o fazia engraçado e muito querido. Gozador, não: um palhaço!
Interessa-nos, porém, apenas a última invenção dele, tempo que já gozava de prestígio e de uma riqueza considerável na região. Ficou-se sabendo que o gênio da trapaça arranjou um diploma falso de Medicina, transformando-se em Dr. Geninho. E foi assim que fundou o primeiro hospital de Roubópolis. Seu plano não era, no entanto, cuidar dos doentes da cidade, até porque Roubópolis não tinha muitos problemas de saúde, carecia era de empregos para tanta gente à-toa. Geninho estava mesmo de olho era na lei que transformou todas as pessoas do seu país em doadores de órgãos.
Foi assim que surgiu a ADOR (Associação dos Doadores de Órgãos de Roubópolis). Segundo essa associação, todo aquele que quisesse vender qualquer parte do corpo, devia se inscrever no sistema e esperar um interessado. Constava do contrato que, toda vez que um órgão era vendido, a entidade retinha 50% do valor da venda. Dessa quantia, os associados rateavam 30% e o hospital ficava com os 20% restantes.
O serviço trouxe sucesso para a cidade e o movimento cresceu assustadoramente. Havia uma fila permanente na porta do hospital e, dos fornecedores, ouviam-se as mais escabrosas frases: Vendo um rim em perfeito estado de conservação! Tenho um pulmão novinho em folha para vender! Gostaria de negociar uma perna! Quero vender um pedaço do meu fígado!...
Não era raro também quem fosse negociar órgãos de outras pessoas. Nesse caso, para fechar o negócio, o hospital exigia uma procuração do “doador”. Com isso, de vez em quando, chegava alguém ao hospital a dizer: "Vim vender a fressura do meu irmão!" Outros, entre lágrimas, anunciavam o desejo de vender "os fatos" da mãe ou do pai que acabara de falecer. Havia até aqueles matadores de aluguel que saíam à procura de um órgão para um cliente muito especial. Esse trabalhinho tinha o aval da entidade fundadora do serviço.
Nem é preciso dizer que o hospital se desenvolveu muito com a renda vinda da associação. Dava para pagar até altos salários a bons médicos que vinham de outras cidades para trabalhar ali. Por isso, Roubópolis ficou muito conhecida por realizar transplantes e difíceis intervenções cirúrgicas em pacientes famosos.
Com o tempo, esses profissionais tomavam conhecimento das falcatruas feitas pela associação e muitos acabavam se integrando a ela. Aqueles que representassem perigo eram friamente eliminados e ainda tinham seus órgãos aproveitados. Dava-se um jeito para que a família do sacrificado não ficasse sabendo a verdadeira causa mortis.
Dos maiores absurdos cometidos no hospital do Dr. Gênio, como a população o chamava, era a retirada de órgãos sadios dos pacientes em tratamento. Arrancavam-se rins, pulmões e até córneas, sob o pretexto de o órgão estar comprometendo a saúde da vítima. Além disso, muitas vezes apressava-se a morte de pacientes pobres, para que esses cedessem órgãos sadios a clientes importantes.
O caso só veio a público quando D. Magdalena decidiu acabar com os problemas renais do marido doando-lhe um rim. Como optou por fazer seus primeiros exames em outra cidade, descobriu que só possuía um dos órgãos. Convenceu-se, então, de que perdera o outro num parto feito no hospital de Roubópolis, única vez que precisou de cuidados médicos em sua vida.
A mulher procurou a delegacia da cidade e registrou queixa. O delegado foi tirar satisfações com o Dr. Geninho, mas as palavras do salafrário acabaram fazendo do homem da Lei mais um sócio da entidade. "Elite aqui não vende órgãos, doutor, só participa dos lucros!" D. Magdalena foi ao prefeito e este, incrédulo, quis processar o falso médico. Geninho o convenceu a fazer parte do jogo também. D. Magdalena foi ao juiz da cidade, mas ele era outro que nunca tinha sido santinho. E, ao saber das vantagens que teria, não pensou duas vezes para se integrar à associação. Por correspondência, só avisou a vítima de que seu rim fora retirado porque estava doente.
Mas a professora não desistiu, tinha certeza que havia alguma coisa errada naquilo tudo, pois nunca tinha sentido nenhum problema renal. Ao se achar ameaçada de morte, mudou-se para a capital do seu estado e lá entregou o caso à Secretaria de Saúde. Passaram-se longos anos e D. Magdalena nunca teve resposta do processo movido contra o "Hospital Doutor Genebaldo".
Já desanimada, ia tentar uma última investida junto ao Ministério. Tinha plano de ir pessoalmente à capital do seu país para uma conversa com o ministro. "Era impossível não resolver daquela vez!" Comprou passagem para uma terça-feira de abril.
Mas, na segunda à noite, assistindo a um telejornal, veio-lhe a maior decepção de sua vida. Para seu espanto, viu estampar na tela o rosto do Dr. Gênio e a confirmação de que ele havia sido nomeado Ministro da Saúde de Furtugo. E já nem morava mais em Roubópolis, havia-se mudado para Furtago, a capital do país. Então só restou a D. Magdalena morrer pouco tempo depois, com uma infecção irreversível em seu único rim.
Texto publicado pelo autor, em 2012, no livro “A felicidade se faz de coisas possíveis”, pp. 146-150.
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